O novo Paradoxo Holístico da Saúde
A palavra paradigma vem sendo usada freqüentemente desde que o físico e filósofo Thomas S. Khun1 a empregou em seu livro The Structure of Scientific Revolutions, significando modelo ou padrão a ser seguido para o estudo dos fenômenos e da realidade. Representa um sistema de aprender a aprender e determina normas para o desenvolvimento do conhecimento futuro (Crema)2.
Ciência significa o conjunto do conhecimento humano adquirido principalmente a partir da observação da natureza, da intuição humana e, ultimamente, da pesquisa analítica. Objetiva proporcionar ao ser humano conforto, paz e felicidade. A ciência evoluiu relativamente pouco e desordenadamente até meados do século XVI, sem bases bem estabelecidas de estudo e pesquisa, quando passou a ser fortemente influenciada pelo pensamento dos grandes gênios de então, principalmente Galileo Galilei (1564-1642), mestre da dedução teórica, Francis Bacon (1561-1626), o criador do empirismo da investigação, René Descartes (1596-1650), criador da geometria analítica e Isaac Newton (1642-1727), criador dos princípios da mecânica. Descartes desenvolveu o método científico racional dedutivo e defendeu o dualismo da natureza, isto é, matéria (res extensa) e pensamento (res cogitans); favoreceu, assim, o dualismo do ser humano (corpo e alma, ambas sob o amparo de Deus, cuja existência ele julgou ter demonstrado a partir do raciocínio lógico). Foi capaz ainda de distinguir duas fontes de conhecimento: a intuição e a dedução. Porém, para ele todo conhecimento humano dependeria apenas da razão ou do pensamento e nunca da sensação ou da imaginação. Considerou que todos os corpos materiais, incluindo o humano, são como máquinas, cujo funcionamento obedece a princípios mecânicos5. Newton consolidou o método racional dedutivo de Descartes5 - e assim surgiu o paradigma cartesiano-newtoniano, que influenciou e influencia ainda hoje praticamente todos os campos do conhecimento humano. Este paradigma, simplificadamente, parte do pressuposto de que, para se conhecer o todo, é preciso fragmentá-lo em seus componentes e estudar cada um deles separadamente. O todo seria o resultado da união e entrelaçamento dessas partes menores. Por exemplo, para conhecer o funcionamento de ua máquina, é preciso desmontá-la em suas partes. Isto é, dividir para conhecer.
A medicina, como ciência, vem evoluindo principalmente a partir de Alcmaeón de Cróton (séc. VI a.C.), o qual, ao atribuir a causa das doenças ao desequilíbrio das potências da natureza, desfez o mito de magia que predominava na prática médica. Hipócrates (séc. V a.C.) aprofundou os conceitos de Alcmaeón e renegou a concepção segundo a qual as doenças representavam uma punição dos deuses ao concluir que 'cada doença tem sua própria natureza e surge de causas externas'. Dentre seus maiores méritos, destaca-se o de insistir na ética para o exercício da medicina.
Galeno, médico grego que exerceu a profissão em Roma a partir de 164 a.D., introduziu conceitos inovadores de anatomia e fisiologia (é considerado o criador da fisiologia experimental), que são pertinentes até hoje*. Realçou, sobretudo, a natureza orgânica das doenças3, 4. O paradigma cartesiano-newtoniano, igualmente, influenciou o desenvolvimento do conhecimento médico ao estimular o estudo do corpo humano pelo desmembramento de seus componentes - obra já iniciada por Galeno. Isto possibilitou o avanço da fisiologia e fisiopatologia, criando condições para um progresso formidável na prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças. Exteriorizou de tal forma a complexidade das doenças que justificou o surgimento das diferentes especialidades médicas, nas quais o médico aprofunda seu conhecimento em determinado órgão ou sistema orgânico, quase sempre relegando a segundo plano a abordagem do ser como um todo. Isto é, o médico especialista tem um conhecimento vertical profundo e horizontal limitado. (Atribui-se a A. Einstein a observação de que o especialista sabe quase-tudo de quase-nada, numa crítica velada ao fragmentismo).
O método analítico cartesiano, inquestionavelmente, foi um dos pilares da fantástica evolução do mundo moderno. No entanto, é igualmente inegável que contribuiu para o descaso dos sentimentos íntimos do ser humano, em virtude da ênfase na abordagem mecanicista. Serviu, por exemplo, para criar confusão entre riqueza material e felicidade individual - e isto explica, em parte, os desequilíbrios sociais (que tão bem conhecemos) e a destruição sistemática do nosso ecossistema, a qual, realizada em nome do progresso, ameaça a existência da vida na terra, inclusive a humana. Estas observações levam a uma constatação paradoxal: a ciência, apesar de seu desenvolvimento fantástico nos últimos 150 anos e criada para oferecer ao homem conforto, paz e felicidade, não foi capaz de fazer o homem descobrir a paz, a felicidade e, principalmente, o amor! Ao contrário, despertou um mundo dominado pelo egoísmo, crueldade, miséria, fome, opressão, guerras, destruição indiscriminada da natureza e descaso pelos verdadeiros valores do ser. O conhecimento, tal como é hoje, sufoca a sabedoria e se impõe desastrosamente a ela.
Em medicina, aconteceu algo semelhante. Os médicos modernos e conscientes convivem simultaneamente com uma euforia e uma perplexidade: euforia por se julgarem donos de um grande conhecimento, proporcionado pela evolução da ciência médica, e perplexidade por sentirem que, mesmo com tanto saber, são incapazes de solucionar definitivamente a maioria dos problemas de seus pacientes. Percebem ainda que seu conhecimento atual é frágil e transitório, por ser oriundo do método científico analítico (cartesiano), o qual nem sempre é capaz de revelar a verdade em si. Por isto, os médicos são cheios de incertezas4. (Algumas correntes filosóficas admitem, ao contrário de Descartes, que a verdade surje pela intuição, que é uma dimensão absoluta de nosso ser, portanto independente de análises. Mas, não costumamos, com raras exceções, ser intuitivos em nossos estudos científicos).
Jiddu Krishnamurti 6 (1895-1986), considerado um sábio hindu, explica esses paradoxos: "temos progresso técnico sem um progresso psicológico equivalente e, por este motivo, há um estado de desequilíbrio; têm-se realizado extraordinárias conquistas científicas e, no entanto, continua a existir o sofrimento humano, continuam a existir corações vazios e mentes vazias... Um coração vazio mais uma mente técnica não fazem um ente humano criador..." F. Capra 7 relata um diálogo em que Krishnamurti complementa: "primeiro você é um ser humano e depois um cientista. Antes você tem de se tornar livre, e essa liberdade não pode ser atingida por meio do pensamento. Ela é atingida pela meditação - a compreensão da totalidade da vida, em que cessam todas as formas de fragmentação". (Krishnamurti argumenta que o pensamento "nunca poderá renovar a si mesmo..., porque é sempre a resposta dos antecedentes - nossos condicionamentos, nossas tradições, nossas experiências, nossas acumulações pessoais e coletivas". Por isto, não é capaz de criar algo novo, sendo, além disso, um inimigo da verdade absoluta, pois bloqueia a capacidade de meditar e de intuir. A verdade aflora quando temos mente vazia, isto é, quando nos livramos do pensamento9!)...
Diante da nossa relativa (in)eficácia no exercício da medicina, podemos ponderar que ela se deve, pelo menos em parte, à excessiva ênfase que habitualmente dedicamos à doença (parte) e relativo descaso para com o doente (todo). Enquanto procuramos conhecer aquela em seus mais íntimos mecanismos e detalhes, não nos damos conta de que, por trás do órgão doente, existe um ser de altíssima complexidade, possuidor de cérebro, sentimento e mente, a qual [mente] está em sintonia constante com o universo, por ser parte do mesmo. Em suma, somos técnicos que cuidamos do ser humano, mas não nos atemos ao ser em si - ou o fazemos de modo insuficiente, por imposição do método que adotamos. Em verdade, mal nos conhecemos.
A Natureza do Ser Humano
A natureza do ser humano não costuma ser considerada nas diversas disciplinas do currículo médico; em geral, o tema só é tratado em compêndios de psicologia ou de medicina psicossomática4. Entretanto, como exercer adequadamente a medicina humana se não conhecemos o homem em sua totalidade? Para a Organização Mundial da Saúde, o homem é um ser bio-psico-social ; saúde subentende um perfeito equilíbrio entre os três componentes e não simplesmente ausência de sintomas.
Mutatis mutandi, doenças podem ser consideradas, pelo menos as adquiridas, um resultado de desequilíbrio em um ou mais componentes do indivíduo. Em outras palavras, significa uma exteriorização de distúrbios íntimos da esfera física, psíquica e/ou social da pessoa. Uma perturbação em um dos componentes vai, inevitavelmente, refletir nos outros dois, por serem inter-relacionados e indissociáveis (indivíduo), gerando então uma seqüência de eventos que, em última análise, se manifestarão como sintomas e sinais de uma doença
As escolas médicas, como salientamos, enfatizam a doença em detrimento do doente e para ela [doença] direcionam os recursos diagnósticos e terapêuticos; não levam em conta que a doença representa apenas ua manifestação exteriorizada de problemas interiores do ser4. Ênfase na parte, negligência no todo. Visão mecanicista ou organicista do ser, ausência de avaliação global. É de observação comum que os médicos modernos são mais preparados para ouvir, sentir e perceber melhor os órgãos; ao contrário, os médicos antigos percebiam melhor as pessoas. A tecnologia moderna investiga bem a doença, mas é fria, impessoal, insensível e incapaz de adentrar na alma do paciente. Este não aguarda ansiosamente apenas pela modernidade na condução de seu caso, mas espera encontrar diante de si um técnico competente (médico) que seja também um confessor, um protetor e um amigo. Do técnico, ele espera soluções; ao confessor, revela seus problemas íntimos, às vezes timidamente, mas com coragem; ao protetor, entrega seu destino; e do amigo, espera solidariedade, compreensão e calor humano. Fica então evidente porque o computador não substitui o médico nessa função perante o paciente, que é essencialmente humana.4 Uma outra abordagem mais complexa do ser humano visualiza quatro dimensões do mesmo e foram desenvolvidas por Philon de Alexandria e Karlfried Graf Dürckheim: soma, psique, nous e pneuma8.
Esta última conceituação antropológica serve para introduzir o médico na percepção holística do ser humano e pretende servir de base para uma nova racionalidade, ao fixar o homem em íntima conexão com seu interior (homeostase) e exterior (ecologia), considerando-o como parte indissociável do mesmo e inevitavelmente ligado ao seu destino. Holismo (de holos: todo) representa um sistema que vem sendo cogitado desde Heráclito, na antiguidade grega, mas que passou a ser mais sistematizado a partir da publicação do livro Holism and Evolution por Jan Smuts em 1921. Procura ser um modelo científico baseado na inter-relação dos fenômenos, onde tudo tem a ver com tudo, não só no ser humano, mas em todo universo, num entrelaçamento que une tudo a tudo2, 10. Leonardo Boff11 esclarece que "holismo não significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade."
A percepção do ser humano em sua totalidade adota este sistema de síntese ou agregação dos componentes do ser, ao contrário do método cartesiano analítico, reducionista, fragmentário ou dissociativo. Procura juntar para conhecer. Enfatiza o físico, mas intimamente inter-relacionado com a mente, a consciência, o espírito e com as energias do universo. Considera a doença adquirida não como causa, mas como conseqüência do distúrbio interior do ser e admite que o tratamento limitado a ela, doença, é muitas vezes insuficiente para alcançar a cura definitiva . As doenças teriam, necessariamente, um fundamento muito além da nossa percepção atual e, com certeza, passariam pelas diferentes dimensões do ser até se manifestarem no corpo, etapa mais evidente desse processo. Em nosso estágio evolutivo atual, estamos longe de entender com clareza os íntimos fenômenos da natureza, seja no macro (universo), seja no microcosmo (ser). Assim, não temos resposta ainda para as inúmeras perguntas que surgem.
Sob este novo paradigma, espera-se que o médico se volte mais para o ser humano inteiro, utilizando meios existentes - ou ainda por existir - que verdadeiramente possam favorecer seu equilíbrio global. As modalidades terapêuticas filosoficamente mais voltadas para o ser, como homeopatia e acupuntura, em que pesem as incertezas a respeito, aliadas à psicologia transpessoal com abordagem transdisciplinar e complementadas pela ação medicamentosa efetiva na doença, poderão significar um modelo de conduta integral frente ao ser doente, resultando em benefício real ao mesmo. É preciso ousar para progredir, com consciência de que nosso destino está além do que conhecemos hoje e que nossa essência, o espírito ou pneuma, evolui para a perfeição de Deus.
Bibliografia:
1. Kuhn, T.S. The Structure of Scientific Revolutions, 2nd. ed. rev. 1970
2. Crema, R. Introdução à Visão Holística. Summus Editorial, São Paulo, 1988.
3. Entralgo, P.L. Historia de la Medicina. Barcelona, Salvat, 1978
4. Teixeira,H.; Dantas,F. O Bom Médico. Rev. Bras. Educ. Méd.: (21)1, 39-46, jan/abr, 1997
5. Encyclopaedia Britannica. CDTM 1997
6. Krishnamurti, J. O Despertar da Verdade, Tecnoprint, Rio.
7. Capra, F. Sabedoria Incomum. Cultrix, São Paulo, 1988
8. Leloup, J.-Y., Boff, L. Terapeutas do Deserto. 2ª ed., Editora Vozes, Petrópolis, 1998
9. Krishnamurti, J. Sobre a Mente e o Pensamento. Cultrix, São Paulo, 1993.
10. Crema,R. Saúde e Plenitude. Um Caminho para o Ser. Summus Editorial, São Paulo, 1995.
11. http://www.boff.com/
12.http://www.ludoteca.if.usp.br/faiser/declaracao_de_veneza.htm
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